Esta pergunta marca cada vez mais a agenda. Embora a crise da habitação não seja exclusiva de Portugal, o país ocupa lugar de destaque pelas piores razões: tem um dos menores parques habitacionais públicos da Europa (pouco mais de 2% do total) e o preço da habitação mais do que duplicou nos últimos 10 anos (106%, enquanto a média europeia ficou nos 48%, segundo o Eurostat), sem que os salários acompanhassem essa escalada. A cada ano que passa, mais pessoas deixam de conseguir aceder a uma habitação condigna.
O desinvestimento público de décadas na habitação deixou o setor nas mãos do mercado, enquanto o imobiliário se tornou num ativo financeiro sem fronteiras. A história mostra-nos que o mercado, por si só, nunca conseguiu cobrir todas as necessidades habitacionais. E essa realidade é cada vez mais evidente.Sendo a habitação um direito constitucional, não podemos aceitar o reiterado incumprimento das obrigações do Estado, nem que a função social da habitação, definida em Lei de Bases, permaneça letra morta.
A crescente dificuldade de acesso à habitação não se deve necessariamente ao desaceleramento do ritmo de construção, após um período de 25 anos em que se construiu uma casa a cada cinco minutos. Portugal é o quarto país da OCDE com maior superavit habitacional: 5,98 milhões de fogos para 4,15 milhões de famílias. Simultaneamente, uma em cada dez casas nas zonas de maior procura e uma em cada quatro construídas nos últimos 18 anos estão vazias (INE).
Outros fatores justificam o cenário atual, como a continua falta de investimento em habitação pública e a prioridade ao crédito bonificado para aquisição de casa própria, com quase 8 mil milhões de euros de financiamento público entre 1987 e 2011. Destaca-se, ainda, a natural atratividade do país, reforçada por incentivos ao investimento estrangeiro, como Vistos Gold e benefícios fiscais a residentes não habituais. Boia de salvação para as contas nacionais, esse investimento, aliado ao crescimento do Alojamento Local e à desregulação do mercado de arrendamento, ameaça hoje afogar o cidadão comum, empurrando-o para locais sem equipamentos, serviços básicos e transportes públicos eficazes.
Apesar das mais de 700 mil casas vazias sinalizadas em 2021 no país (INE), a oferta acessível escasseia, enquanto o segmento de luxo prolifera. A taxa de esforço de segmentos cada vez maiores da população tornou-se incomportável, a condição de arrendatário cada vez mais instável e o número de famílias sem condições mínimas de habitabilidade aumenta. Acresce, ainda, o número de trabalhadores que recorrem ao crédito para pagar a prestação da casa ou a renda (DECO), bem como os casais que, apesar de trabalharem, são considerados sem-teto. A falta de acesso à habitação afeta em particular as gerações mais novas, inibindo o acesso ao ensino superior, dificultando a sua autonomia e forçando a saída para o estrangeiro da geração mais qualificada de sempre, comprometendo assim a natalidade, a economia e o futuro do país.
A Nova Geração de Políticas de Habitação (2018), o Programa Nacional de Habitação (2022-2026), o pacote Mais Habitação (2023) e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR, 2021-2026), com mais de 2 mil milhões de euros a fundo perdido para habitação, visaram retomar o investimento público, conter o estímulo ao investimento estrangeiro e criar alguma regulação do mercado. Porém, em 2024, algumas medidas emblemáticas - como o fim dos Vistos Gold, dos incentivos aos residentes não habituais e da transmissibilidade das licenças de Alojamento Local - foram revertidas pela iniciativa Construir Portugal. Assente na falsa ideia de que o aumento da oferta, per si, fará descer os preços da habitação e de que é necessário libertar solo barato, esta iniciativa previa alterar a ‘Lei dos Solos’, dando origem a um diploma amplamente contestado por especialistas pelas suas externalidades e ineficácia.
A componente habitacional do PRR é um passo em frente, mas a sua operacionalização carece de sentido estratégico. O acesso é determinado sobretudo pela capacidade de resposta dos municípios e beneficia os que têm maiores recursos técnicos e financeiros (a Área Metropolitana de Lisboa, por exemplo, assegurou praticamente um quarto do total).
Uma parte deste financiamento servirá para reabilitar parque habitacional público existente, não para o expandir. Não sendo claras as prioridades, corre-se o risco de não se chegar a quem mais precisa e de acentuar assimetrias territoriais. Apesar dos resultados expectáveis, há medidas que não passaram à prática, ou com resultados insatisfatórios e até mesmo opostos aos desejados. Urge por isso um debate esclarecido, que contribua para concretizar medidas efetivas.
A política pública de habitação inclui um largo espectro de agentes e medidas com diferentes tempos de ação. O elenco de medidas que se apresenta não é exaustivo, mas mostra potencialidades em aberto. Muito do que há a fazer já está legislado, mas não é posto em prática por falta de financiamento, ou porque falta identificar os fatores críticos e atuar sobre eles de forma concertada, respeitando a diversidade de situações no território nacional. A especificidade da habitação - simultaneamente um direito e um mercado - traz consigo inevitáveis conflitos de interesses que cabe ao Estado minimizar, com critérios claros, justos e sustentáveis.
As medidas que integram as políticas públicas de habitação constituem uma ‘mala de ferramentas’ agrupada pelos seguintes tipos de instrumentos:
a) Medidas de promoção e gestão da habitação pública - visam aumentar o parque de habitação pública ou não especulativa, através da construção de habitações e da reabilitação para esse fim de património do Estado disponível.
Com uma percentagem de habitação pública muito baixa (2%), Portugal precisa de apostar fortemente neste tipo de medidas para responder a um leque variado de necessidades e influenciar os valores de mercado.
b) Medidas tributárias e política fiscal - procuram, através da tributação, incentivar um melhor uso dos recursos habitacionais, privilegiando a reabilitação urbana, a dinamização do mercado de arrendamento, a promoção de cooperativas, a habitação a custos controlados e o uso das habitações devolutas.
Não comprometendo a liberdade de proprietários e investidores, mas direcionando o mercado para as necessidades reais, as medidas fiscais são indispensáveis e devem ser compatíveis com a política nacional de habitação.
c) Medidas de apoio financeiro e subsidiação - concebidas ao abrigo de programas para aquisição de casa própria ou como complemento da renda, podem potenciar a reabilitação do edificado por proprietários, condomínios ou arrendatários e apoiar cooperativas de habitação, autoconstrução e outras iniciativas cidadãs.
Embora de efeito imediato, a subsidiação tende a inflacionar os preços de mercado, pelo que os seus impactos devem ser monitorizados e, se necessário, contrabalançados. Já o apoio à habitação cooperativa e a outros modelos de cariz colaborativo e coletivo é uma aposta de futuro.
d) Medidas legislativas e de regulação - procuram definir regras claras para os diferentes intervenientes no mercado imobiliário e agilizar procedimentos. Devem desencadear melhores políticas e incentivar um mercado ajustado às necessidades locais. Incluem-se nesta categoria o código da construção ou a regulação do arrendamento habitacional.
De acordo com o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, a todos é garantido o direito à propriedade privada. Porém, os direitos económicos e sociais não são ilimitados ou ilimitáveis. Estando o direito à habitação em Portugal francamente comprometido - não só, mas também, pela recusa em regular o funcionamento do mercado - não é aceitável a falta de ponderação e equilíbrio entre os vários direitos em causa.
Consideramos fundamental a monitorização pública do mercado habitacional, público e privado, por forma a implementar melhores políticas. A reformulação, capacitação e descentralização do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana é igualmente essencial para a boa implementação de qualquer estratégia, garantindo uma visão integrada sobre o território e a diversidade de situações existentes. Está em causa, não apenas o acesso a uma habitação, mas também o direito a um espaço urbano diverso, qualificado e acessível, em que o uso do solo, a mobilidade e os serviços públicos são planeados de forma interdependente. Das medidas que apresentamos, se bem conjugadas entre si, poderá resultar uma resposta robusta à crise atual.
implementação de soluções de emergência habitacional, como por exemplo a Bolsa Nacional de Alojamento Urgente Temporário, o programa Porta de Entrada e outras soluções como, por exemplo, a constituição de pequenos núcleos habitacionais provisórios, inseridos na cidade (à semelhança do que há em Berlim);
reforço do investimento público, visando a criação de 100.000 fogos para resolução da indignidade habitacional até 2033 e 175.000 fogos para arrendamento acessível até 2040, por forma a alcançar os 5% de parque habitacional público, como previsto na Nova Geração de Políticas de Habitação;
reconversão dos imóveis públicos devolutos com vocação habitacional em habitação acessível, com metas e verbas próprias, articulando a ação do governo e das autarquias;
aumento do número de camas em residências universitárias e criação de soluções para trabalhadores deslocados (professores, agricultores, polícias) e imigrantes nas áreas de maior pressão;
reforço da iniciativa housing first para pessoas em situação de sem-abrigo, em alternativa aos atuais albergues coletivos, a par da resposta a vítimas de violência doméstica, assegurando uma cobertura nacional;
experimentação do modelo de habitação incremental, em que o poder público infraestrutura e procede ao loteamento e as populações constroem as casas, com modelos e materiais acessíveis, pré-estabelecidos e, de preferência, pré-fabricados;
criação de uma linha de financiamento às autarquias para ativarem os mecanismos de execução dos planos municipais.
promoção da reabilitação urbana através de benefícios fiscais para obras em imóveis destinados à habitação e ao arrendamento acessível, definindo áreas de intervenção prioritária;
redução de impostos para cooperativas e outras organizações sociais que promovam habitação a custos controlados;
aplicação de impostos progressivos sobre habitações devolutas privadas, penalizando o património sem uso habitacional efetivo em áreas de pressão urbanística;
utilização do IMI para disciplinar os usos do solo e desincentivar a especulação, articulando a carta de ordenamento dos planos diretores municipais com o valor patrimonial tributário;
fim do regimes dos Vistos Gold, dos benefícios fiscais para residentes não habituais e das deduções em compras de imóveis para fins empresariais;
progressividade na aplicação das Taxas pela Realização, Manutenção e Reforço das Infra-estruturas Urbanísticas (TRIU), do IMI e do IMT;
adequação da tributação do Alojamento Local face à do arrendamento, privilegiando este último.
financiamento, com garantia mútua e bonificação do juro, para projetos cooperativos de habitação acessível e propriedade coletiva;
atribuição de subsídios ou linhas de crédito para pequenos proprietários que pretendam reabilitar os seus imóveis, com foco na habitação própria e no arrendamento acessível, ou para a arrendatários com contratos de renda baixa e sem termo, caso os senhorios se recusem a realizar obras;
reformulação do Programa de Apoio ao Arrendamento, adequando o regulamento, simplificando exigências, melhorando a comunicação e agilizando a plataforma digital;
monitorização dos apoios à aquisição da primeira habitação, ao arrendamento e ao ‘complemento ao alojamento’ para estudantes universitários, prevenindo impactos no agravamento dos preços;
incentivos, para lá do PRR, à manutenção, conservação e reabilitação de edifícios habitacionais, em termos de resiliência sísmica e eficiência energética;
incentivos à atração e fixação em territórios de baixa densidade e em declínio, com programas de dinamização e revitalização e apoio à manutenção e utilização das habitações não permanentes.
criação de um Código do Arrendamento Habitacional que inclua todas as modalidades de arrendamento público e privado e todos os agentes (inquilinos, senhorios, mediadores e plataformas), garantindo direitos e deveres, transparência, estabilidade contratual, qualidade habitacional, garantia de execução coerciva de obras, controlo às rendas, limitações à subida de valor em novos contratos e mecanismos adequados de fiscalização e controlo;
seguros obrigatórios que contribuam para a confiança no mercado de arrendamento, a salvaguarda face a inquilinos incumpridores e a garantia de alternativas providenciadas pelo Estado quando necessário, não se admitindo qualquer despejo sem que seja dada alternativa;
regulação eficaz do funcionamento dos condomínios e do cumprimento da obrigação de obras de conservação das partes comuns;
políticas de zoneamento inclusivo, fixando uma percentagem mínima para habitação acessível e/ou pública em novas operações urbanísticas;
agilização dos licenciamentos para habitação acessível em áreas de intervenção prioritária;
promoção de novos modelos cooperativos baseados em parcerias público-comunitárias e apoio a projetos de habitação colaborativa, como o cohousing;
soluções modulares e flexíveis para a reabilitação urbana, garantindo a adaptação rápida de edifícios devolutos às necessidades habitacionais;
afetação social das mais-valias gerais atribuídas pelos planos territoriais, evitando a captação privada de mais-valias geradas por investimentos públicos;
reintrodução da caducidade das licenças de Alojamento Local e permissão de Alojamento Local na morada fiscal de proprietários em nome individual, 90 dias/ano ou em parte da casa no ano inteiro;
revisão da obrigatoriedade de estacionamento em estrutura edificada e no espaço público, privilegiando opções de mobilidade partilhada e sustentável;
revisão do Código de Expropriações, que, quando necessárias, devem atribuir ao solo o valor anterior ao que resulta da sua reclassificação;
agilização dos processos de heranças indivisas, reduzindo o número de fogos devolutos e contribuindo para a reocupação dos núcleos históricos;
limitação da construção de novos estabelecimentos hoteleiros em zonas de grande pressão;
cooperação com iniciativas internacionais que visem a regulação dos fundos abutres e o combate aos paraísos fiscais.
Perante uma realidade cada vez mais crítica e dinâmica, urge um diagnóstico nacional, público, atualizado e objetivo, dos resultados e impactos do que está a ser feito em matéria de habitação e dos obstáculos que persistem. As grandes escolhas da política pública, para serem sustentáveis e efetivas, têm de se fundamentar neste conhecimento e não em ciclos eleitorais cada vez mais curtos e imprevisíveis. A atual investigação académica sobre habitação deve também ser reconhecida e mobilizada por quem tem a responsabilidade de definir e executar políticas públicas. A dimensão da crise exige um consenso alargado quanto às políticas a perseguir e às formas de financiamento.
Não podem, entretanto, ser adiadas intervenções prioritárias. O recrudescimento dos ‘bairros de barracas’ e a não reconversão de grande parte das áreas urbanas de génese informal (conhecidas como AUGI) são sintomas agudos de uma crise que não se resolve com demolições e despejos forçados sem alternativa, exigindo respostas urgentes e comprometidas com o direito universal à habitação.
É assim que acompanhamos com expectativa a Comissão Especial sobre a Crise Habitacional na União Europeia, criada pelo Parlamento Europeu em fevereiro deste ano. Esta abre, pela primeira vez, espaço a uma Política de Habitação Europeia, estando em cima da mesa soluções que assegurem uma habitação condigna, sustentável e acessível a todos os cidadãos europeus - as quais, sabemos, exigem que parte substancial do parque habitacional esteja fora do mercado livre. Portugal está, e permanecerá, ainda longe deste ideal, mas precisa de caminhar consistentemente nesta direção, priorizando o investimento em habitação pública, o apoio a novos modelos colaborativos, a utilização dos devolutos, o controlo às rendas e a regulação efetiva do mercado, que deve ser parte da solução, não do problema.
A Rede H desenvolveu um debate interno alargado sobre quais as políticas de habitação necessárias para ajudar a debelar a crise da habitação.
As propostas resultantes desse debate foram resumidas neste ensaio, publicado no jornal Expresso.
Autores
Rita Castel’ Branco, Sílvia Jorge, Helena Roseta e Luís Mendes, com a participação de Alexandra Cachucho, Joana Mourão, Joana Pestana Lages, José Carlos Guinote, Manuela Mendes, Nuno Patrício, Ricardo Carneiro, Rita Silva, Sara Brysch, Sara Lopes e Tiago Castela