CARTA ABERTA

Urbanização em solos rústicos

Um retrocesso de décadas, assente em falsos álibis

Público01-2025

Na sequência da alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial por via do Decreto-Lei n.º 117/2024, publicada a 30 de dezembro de 2024, a Rede H lançou uma Carta Aberta sobre as consequências gravosas e irreversíveis na ocupação do território, apelando ao Governo que reveja a sua posição e apoiando a apreciação urgente deste Decreto-Lei pela Assembleia da República Portuguesa.

Este documento foi redigido por André Carmo, Demétrio Alves, Helena Roseta, José Carlos Guinote, Luís Mendes, Pedro Bingre do Amaral, Rita Castel’Branco, Sara Brysch e Sílvia Jorge.


Em três dias a Carta foi subscrita por 600 académicos e especialistas ligados à habitação, ao desenvolvimento urbano e territorial, à floresta, à agricultura e ao ambiente.
Nos dias seguintes à carta a ser lançada foi subscrita por mais 1900 pessoas e coletivos, totalizando mais de duas mil e quinhentas assinaturas.

CARTA ABERTA

A 30 de dezembro foi publicada a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, Decreto-Lei n.º 117/2024, promulgada pelo Sr. Presidente da República, que a descreveu como “um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”.

Não podíamos estar mais de acordo: a possibilidade de reclassificação de solo rústico em urbano nos termos aprovados subverte um sistema de planeamento progressivamente melhorado, contrariando frontalmente os objetivos fundamentais da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio) e os princípios daquele Regime Jurídico, cujo preâmbulo determina: "Um modelo coerente de ordenamento do território deve assegurar a coesão territorial e a correta classificação do solo, invertendo-se a tendência, predominante nas últimas décadas, de transformação excessiva e arbitrária do solo rural em solo urbano. Com efeito, pretende-se contrariar a especulação urbanística, o crescimento excessivo dos perímetros urbanos e o aumento incontrolado dos preços do imobiliário, designadamente através da alteração do estatuto jurídico do solo." 

O anterior Governo tinha já flexibilizado a reclassificação de solos rústicos para urbanos, invocando, como agora, a falta de terrenos livres para a construção de nova habitação, mas apenas para promoção pública de habitação acessível, em solo contíguo a solo urbano, e desde que fundamentada na Estratégia Local de Habitação ou Carta Municipal de Habitação. Ao abranger todos os terrenos rústicos (públicos ou privados), sem que a totalidade da habitação a construir seja acessível e acolher algumas atividades não residenciais, o atual Governo abre a porta a uma situação radicalmente distinta. 

Acresce que as razões invocadas são contrariadas pela realidade. De facto:

Havendo casos pontuais de falta de solo urbano, importa identificar onde ocorre e qual a dimensão do problema. Ao ignorar a necessidade de tal verificação, o Governo dispensa-se de justificar a sua proposta e dá azo à crença do Sr. Presidente da República quanto à “urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção de habitação”. 

É consensual que a crise da habitação constitui um problema grave e de resolução urgente. Contudo, a conversão de solos rústicos em urbanos não contribuirá para a sua resolução. E prejudicará, de sobremaneira, a agricultura, a floresta e o ambiente, potenciando a ocupação urbana de solos integrados na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional, e a fragmentação do solo rústico essencial à nossa segurança alimentar. Além disso, ao criar uma expectativa de valorização dos terrenos rústicos para fins imobiliários, inibirá o seu uso para a actividade produtiva.

O país necessita de políticas de habitação que evitem a proliferação de bairros periféricos onde se concentram famílias de baixos rendimentos e minorias étnicas, os quais favorecem a estigmatização, perpetuam a pobreza e agravam os custos sociais dela decorrentes. Assim, ao contrário do que perspetiva o Decreto-Lei n.º 117/2024, são necessárias políticas de habitação que reduzam a pressão sobre a expansão urbana, contrariem o desordenamento e a segregação e que promovam: 

Não há que optar, como alguns afirmam, entre habitação e ambiente: a contenção dos limites urbanos é tão fundamental para a qualificação do habitat quanto para a salvaguarda ambiental. É hoje consensual que o desenvolvimento urbano compacto permite mais e melhores opções de transporte, evitando a dependência automóvel e as suas elevadas externalidades sociais e ambientais. Ao garantir deslocações mais curtas, bairros densos e interligados, potenciam o uso do transporte público, o andar a pé e o uso da bicicleta, sendo determinantes para a saúde pública e para o combate às alterações climáticas. Promovem, também, os contactos informais, potenciando bairros com maior sentido de comunidade e uma sociedade mais coesa. Reconhecendo as inequívocas desvantagens da cidade dispersa, a Nova Agenda Urbana (2016) e a Nova Carta de Leipzig (2020), subscritas por Portugal, determinam que as cidades devem ser tão compactas quanto possível, o que reforça a necessidade de construir habitação acessível em zonas já infraestruturadas, preenchendo os vazios urbanos e evitando a construção de novos empreendimentos isolados em solo rústico.

Esta recomendação é particularmente importante perante os alertas das Nações Unidas quanto ao risco de segurança alimentar, face à acelerada degradação dos solos. Em Portugal, 54% dos terrenos agrícolas já estão degradados e apenas uma pequena parcela apresenta elevado potencial agrícola. O licenciamento de construções em solo rústico aumentará a nossa dependência alimentar, levará à destruição de florestas e à necessidade de infraestruturas adicionais, agravando o impacto ambiental. Penalizará, além disso, o já frágil orçamento das famílias e aumentará os custos públicos (estima-se que os custos da dispersão - resultantes de redes de infraestruturas e equipamentos pouco otimizados - cheguem a ser 63% superiores aos da urbanização compacta).

Em suma, esta alteração não ajudará a resolver a crise da habitação e imporá elevados custos sociais, ambientais e económicos para o Estado e para as populações. Face à gravidade do que está em causa, os signatários desta Carta Aberta (que pessoas e colectivos ainda podem subescrever) apelam ao Governo para que reveja a sua posição e aos Deputados para que da apreciação parlamentar do referido Decreto-Lei resulte a efetiva salvaguarda do interesse público.


Esta carta foi redigida por André Carmo, Demétrio Alves, Helena Roseta, José Carlos Guinote, Luís Mendes, Pedro Bingre do Amaral, Rita Castel’Branco, Sara Brysch e Sílvia Jorge, no seguimento do Comunicado emitido pela Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação.

LISTA DE SUBSCRITORES


Lista de subscritores recolhida por formulário eletrónico entre 6 de janeiro e 2 de fevereiro






SUBSCRIÇÕES COLECTIVAS